..
Quando era
criança, na noite de Natal, eu e o meu irmão partia-mos nozes e avelãs no chão
de cimento da cozinha, à luz do candeeiro, enquanto a minha mãe se ocupava das
coisas que as mães fazem.
Depois, quando o
meu pai chegava, jantava-mos como sempre e seguia-se, propriamente, a cerimónia
de Natal. Naquela noite o meu pai trazia um bolo-rei e uma garrafa de vinho do
Porto.
Sentados à mesa,
abria-se a garrafa de vinho do porto e partia-se o bolo em fatias. O meu irmão
e eu disputava-mos o brinde do bolo-rei comendo o mais rápido possível na
expectativa de nos calhar em sorte não a fava, mas sim o almejado brinde!
O meu pai,
deleitava-se com o copito de vinho do Porto e observava calado as nossas
criancices.
Depois, vencedor
e derrotado continuavam felizes, na expectativa da verdadeira magia do Natal.
Púnhamos o nosso sapato na chaminé, (eu punha a bota de borracha, que era
maior), para que, à meia-noite o menino Jesus pusesse a prenda.
Íamos para a cama
excitados, mas queríamos dormir para o tempo passar depressa e ser logo de
manhã. Mal o sol nascia, corria-mos direitos ao sapatinho para ver o que o
menino Jesus tinha la deixado.
Lembro-me de
chegar junto à chaminé e encontrar o maior chocolate que alguma vez tivera
visto ou ousara imaginar existir. O meu irmão, quatro anos mais velho,
explicou-me que era de Espanha, que era uma terra muito longe onde havia dessas
coisas que não havia cá.
O mano é que
sabia tudo e, por isso, satisfeita com a resposta e ainda mais com o presente,
levei o dia todo para conseguir comê-lo a saborear cada pedacinho devagar!
Depois, não me
lembro quando, o meu irmão contou-me que não era o menino Jesus que punha a
prenda no sapatinho, mas sim o nosso pai. Eu não acreditei e fui perguntar-lhe.
O meu pai, que
gostava ainda mais daquilo do que nos, respondeu de imediato que não, que era
mentira do meu irmão, que ele sabia lá, pois se estava a dormir…
Com a pulga atrás
da orelha, no Natal seguinte decidi ficar de vigília, para ver se apanhava o
meu pai em flagrante, ou via o Menino. Mas os olhos pesavam e, contra minha
vontade e sem dar por isso, adormecia sempre e nunca chegava a apurar a
verdade.
Na idade dos
porquês, havia outro mistério à volta da prenda de natal. É que eu ouvia dizer
aos miúdos la da rua, que eram todos os que eu conhecia no mundo, que lhes
mandavam escrever uma carta ao menino Jesus a pedir o que queriam receber.
Maravilhada com tal perspetiva, apressei-me a aprender a ler e a escrever com a
D. Adelina, que era uma senhora que tomava conta da gente quando a nossa mãe
tinha que ir trabalhar e que tinha a 4ª classe, por isso era muito respeitada
sobre os assuntos da escrita e das contas.
Antes de entrar
para a escola primária já sabia ler e escrever mas isso não era suficiente.
Faltava ainda arranjar
maneira de fazer chegar a carta ao seu destino. Para mim, aquilo não resultou:
da lista de brinquedos que eu conhecia, não estava nenhum no meu sapato.
Questionada, a
minha mãe, que tinha ficado encarregue de dar a carta ao Sr. Carteiro, disse-me
que o menino Jesus só dava prendas boas aos meninos que se portavam bem. Mas eu
já era uma menina crescida, já tinha entrado para a escola primária (em 1974) e
sabia que os que recebiam brinquedos eram diferentes de mim noutras coisas
também.
E foi então que,
depois de ler a carta dos Direitos da Criança que estava afixada na porta da
sala de aula, soube de tudo. Senti-me triste, zangada e confusa: Porque é que
escreviam coisas certas e as deixavam ser erradas? Eles eram grandes, podiam
fazer tudo! Se estava escrito ali na porta da escola era porque era verdade e
importante, igual para todas as crianças como dizia na Carta. Que tínhamos
direito a um pai e uma mãe lembro-me. A partir dali todas as coisas que a que a
criança tinha direito, eu não tinha, e isso eram por culpa de alguém.
Experimentei pela primeira vez um sentimento que hoje sei chamar-se injustiça.
Tranquilizei-me
com o pensamento de que um dia viria alguém importante e faria com que tudo
aquilo se cumprisse. E eu aí esperar. Era criança, tinha muito tempo: nascera a
minha consciência cívica.
Compreendi que os
adultos diziam as coisas que deviam ser, mas não eram como eles diziam. Nesta
compreensão confusa do mundo escrevi nesse primeiro ano na escola a minha carta
ao menino Jesus e deixei-a eu mesma no sapatinho. Era um bilhete maior que o
sapato e dizia assim:
“Menino Jesus
Obrigada pela
prenda.
Vou pensar em ti
todas as noites mesmo depois do natal passar e espero por ti no natal que vem.
Gosto muito de ti.
Adeus.”
E rezei a Deus
que, houvesse ou não menino Jesus para por a prenda no sapatinho, me trouxesse
todas as noites o meu pai para casa.
Sem comentários:
Enviar um comentário